Sobre a serventia da literatura
Ontem teria seria um dia tão normal quanto os outros se não fosse por uma pergunta feita a mim.
Pela manhã, fui ao dentista, rotina minha desde sempre e enquanto ele
realizava os procedimentos me perguntou: “Para que você estuda
literatura?”.
É engraçado, dentistas sempre querem que você fale enquanto mexem em sua boca e o pior é que você sempre tenta falar!
Ele continuou:
- Eu gosto de literatura, mas não entendo muito não. Que tal largar a
literatura e vir para a odontologia? Seria bom. O que me diz?
Eu tive que tirar aquele sugador infernal da boca e rir. Ah se eu fizesse odontologia...
Meu odiado e querido dentista estava terrivelmente perverso a esta altura eu esperava tudo dele.
Para quê literatura? Para quê poesia? Estamos acostumados a sempre
atribuir sentidos que de certa forma geram um valor para as coisas que
queremos fazer. É comum pensar: se fulano é médico vai curar, se é
arquiteto vai construir, se é advogado vai obter respeito e etc. Bem,
isso é uma minimização das profissões mas azemos muito isso. O fato é
que quando se chega à literatura, é super comum que a maioria das
pessoas teimem em querer que ela não sirva de nada, assim como a poesia.
Então se eu fosse problematizar escolheria falar do nada e de suas
faces. E aí, fico pensando: que diabo de pergunta! Eu poderia responder
simplesmente:
-Estudo literatura porque gosto.
Ele entenderia e o assunto estaria morto e enterrado.
Acontece que não posso responder dessa maneira, nem ao meu dentista,
nem a ninguém que me pergunte isso, de certa forma estou convivendo tão
densamente com este mundo que a resposta, “porque gosto” causaria certo
desconforto a mim. Aqui uma confissão: muitas vezes me fiz tal pergunta.
Acho que inconscientemente eu buscava uma razão para minha escolha, uma
serventia e demorei muito até perceber que a literatura é uma explosão,
uma força, uma tensão que nos impulsiona. Que mexe conosco, mexe com
tudo por dentro e por fora. A literatura é intensidade, ela é movimento,
é vida.
A literatura é uma possibilidade de caminhada, aviso, tem
que ter coragem para este caminho. Um caminho trabalhoso e até
pedregoso, que nos impõe seus desejos. Fazer literatura de certa forma é
permitir que seja intensificada a vida, a vida colocada como
possibilidade do real. Através dela outros corpos surgem, são
construídos para que a arte apareça. Ela é força geradora. A literatura
nos faz sentir as intensidades, os impactos, os transtornos, as
amplificações de sentido. Quando nos jogamos descobrimos a afetação que
podemos sofrer com um texto literário. Ainda me lembro do grande impacto
que sofri quando li a ‘Terceira margem do rio’ de Guimarães Rosa.
Fiquei imóvel diante da beleza desse texto, não sabia o que pensar,
precisei reler, escavar entre seus espaços e preenchimentos. O bom de se
fazer literatura é sempre está a disposição da surpresa e do
inesperado.
Tenho um amigo que diz: “literatura é vertigem”. É, na
vertigem que damos lugar aos outros nomes, aos outros corpos. É na
vertigem que podemos perceber o que está implícito. É na vertigem que a
literatura se mostra como intensiva, intempestiva e progressiva. Ela tem
a ver com a minha vida, com a sua vida, com todas as vidas.
Eu disse isso ao meu dentista, depois que me livrei do sugador e das agulhadas, ele meio que pasmo, retirou a máscara e falou:
- Não venha para a odontologia não, seria um erro. Na próxima consulta
me traga um livro, ou me sugira algo que possa me sacudir. Acho que eu
preciso ler mais, não tenho experimentado a vida ultimamente.
Sempre sou suspeita, mas NOSSA que texto belissimo.
ResponderExcluirSempre respondo que faço literatura porque gosto, mas depois desse texto vou dizer que faço literatura porque ela me inquieta, me excita, me permite ir a lugares profundos e desconhecidos... ou como bem disse seu dentista Literatura me faz experimentar a vida!
bjss
Muito gostoso... E bem mais que ler o texto, ver transcrita esta paixão quase incriada e inexplicável que nos move ler e, muito especialmente, a escrever.
ResponderExcluirSim, literatura é vida impressa em prosa ou em versos. É, aliás, a Vida que advém como d'um sonho; que a arte molda e a pena enfim materializa.
Abraços literários!